Citroen Mehari - História com 4 rodas

Produzido entre 1968 e 1987 o Citroen Mehari foi um automóvel recreacional e utilitário vendido pela Citroen durante 19 anos sem grandes alterações. É um automóvel que há muito queria abordar por duas razões: primeiro porque tem uma história interessante e segundo porque eu tive um. Bem, a minha mãe teve um para ser exato - um belo magnifico delicioso Citroen Mehari Plage, que hoje valem bastante dinheiro. Sabiam que a Citroen não teve nada a ver com a sua criação ou que o Mehari é o único automóvel vitima de um criminoso em série? O que vamos fazer aqui é dar uma curta mas completa história deste modelo da Citroen que ainda hoje tem tantos fãs - é história automóvel que vale a pena ser recordada.
Porém, antes de falarmos do Mehari propriamente dito temos de falar de dois franceses críticos para esta história: Roland de la Poype e Jean Louis Barrault.

Roland de la Poype
Roland de la Poype nasceu em Julho de 1920 em Pradeaux (França) e era definitivamente alguém que não iria querer chatear. Quando os Alemães invadiram a França durante a Segunda Grande Guerra Roland, na altura com 19 anos, estava a tirar o brevet de piloto e teve que fugir com os seus colegas para Inglaterra. Decidido a correr com os alemães ele voou com as Forces Aériennes Françaises Libres (FAFL) no Norte de África, com a RAF em Inglaterra no esquadrão 602 e até na Frente Soviética com o esquadrão Normandie. Basicamente, onde houvesse um alemão Roland estava lá para lhe estragar o dia - e com grande sucesso: deixou a Força Aérea em 1947 com apenas 27 anos tendo recebido os títulos de "compagnon de la Libération" pelo general de Gaulle e "herói da união soviética" por Estaline que inclusivamente como prenda de despedida deixou-o ficar com o avião que voou nos céus da Rússia.
Deixando a Força Aérea tomou a direção da "Société d'études et d'Applications du Plastique" (SEAP - hoje em dia parte da DuPont) e instalou a primeira fábrica de termo-formagem de plásticos em França em 1947. Hoje em dia algo comum, na altura era uma tecnologia inovadora e ele foi um dos grandes atores da industria dos plásticos na frança principalmente nos setores agrícola e alimentar. Mas pelo meio, em 1968 para ser exato, o bichinho dos automóveis mordeu e ele tinha uma ideia para um: queria produzir um automóvel ligeiro, polivalente, todo-terreno e acima de tudo barato. Para reduzir os custos tinha que ser construído numa mecânica já existente onde seria montada uma carroçaria monobloco produzida de um plástico inovador na altura: o Acrilonitrila Butadieno Etireno que nós conhecemos como ABS. Originalmente a ideia era vender a carroçaria em kit que qualquer um poderia montar num chassis compatível, mas abandonou essa ideia pouco tempo depois.
1º maquete foto citrobe.org
Ele tinha a ideia mas precisava de alguém que o ajudasse a torná-la realidade e aí entra Jean Louis Barrault - designer francês nascido em 1938 em Bourges que criou alguns das grandes peças do design francês contemporâneo - quem se lembra dos eletrodomésticos da Moulinex no anos 80 e 90? Em 1968 Roland convenceu-o a participar no seu projeto.

Depois da abandonar a ideia de vender o seu automóvel (para já sem nome) em kit Roland e Barrault partiram à procura de uma plataforma que serviria os seus objetivos e a primeira escolha foi a Renault 4. Infelizmente (ou felizmente dependendo do ponto de vista) a "4L" acabou por não servir porque o radiador obrigava a uma frente alta de mais para o que queriam. O Citroen 2 Cavalos pode ter sido a segunda escolha mas foi a acertada porque não tinha um radiador.

Para construir o 1º protótipo compraram um 2 Cavalos carrinha usado e retiraram tudo mantendo apenas o chassis e a mecânica original de 425 cm3 e 18 cavalos. Barrault desenhou a primeira carroçaria que foi depois concretizada por Jean Darpin colocando dezenas de elementos em cartão rebitados em cima de uma estrutura metálica, que serviu de base para criar os moldes em madeira para a termo-formação. Inicialmente os painéis laterais em ABS eram planos mas depois receberam as icónicas nervuras/ondas laterais para melhorar a rigidez.
1o carroçaria citrobe.org

1o carroçaria citrobe.org

1o chassis tubular citrobe.org

Os primeiros testes decorreram no verão de 1967 e no outono desse mesmo ano Roland apresentou o seu trabalho aos técnicos da Citroen confiante que estava pronto - tanto que enfim o batizou esta segunda versão do protótipo de "Donkey" ou Mula para completar a imagem de utilitário resistente. Esperava que a Citroen aceitasse fornecer-lhe os chassis e mecânicas que precisava - mas houve uma mudança inesperada de planos.


Os técnicos ficaram tão satisfeitos que levaram o protótipo para ser avaliado pela direção da Citroen. A ideia de Roland era que a Citroen forneceria apenas os chassis e ele faria tudo o resto incluindo a comercialização, mas a marca francesa ficou tão impressionada que decidiu que iria adquirir o projeto por completo para o comercializar.

A empresa de Roland foi contratada para construir 12 veículos de pré-série com 2 grandes alterações - usaram o motor de 602 cavalos com 28 cavalos do Dyane e um novo nome: "Méhari" que significa dromedário, para a imagem de um veiculo utilitário, económico, resistente mas também divertido. Roland fez um trabalho tão bom que para a apresentação aos jornalistas a Citroen usou 8 destes protótipos iniciais.



1968 - Apresentação aos jornalistas
O Citroen Mehari foi apresentado no dia 16 de Maio de 1968 no campo de golf de Deauville, na altura como o "Dyane 6 Méhari".
Para esta apresentação a marca francesa trouxe 8 modelos "temáticos" pré-série do Mehari acompanhados por 20 modelos:
- um amarelo com sacos de golf;
- um azul com luz rotativa para serviços de segurança acompanhado por modelos armadas e com cães;
- um cinzento para o lazer decorado com flores e modelos com vestidos floridos e com uma guitarra;
- um verde para o trabalho de quinta;
- um turquesa com modelos em fato de banho;
- um bege para a caça;
- um vermelho para os bombeiros com luz rotativa e extintores;
- um branco com pequenas jaulas, cada uma com um coelho que no final da apresentação foram oferecidos aos jornalistas;




A Citroen sublinhou a inovação da carroçaria em ABS que podia oferecer uma grande oferta de cores resistentes aos riscos e ferrugem, era leve (apenas 525 quilos) e era capaz de transportar até 400 quilos da carga. Os jornalistas também apreciaram o facto de ser completamente descapotável com o para-brisas que podia ser deitado em cima do capot.

A apresentação foi um sucesso e a Citroen iniciou os trabalhos de transformar estes protótipos pré-série em modelos que podiam ser homologados para a estrada, mas as alterações foram mínimas.



1968->1969 Série 1
A apresentação ao público foi feita no salão automóvel de Paris de 1968 e houveram algumas alterações relativamente ao modelo apresentado aos jornalistas: o Mehari série 1 recebeu o motor de 33 cavalos do Dyane acoplado à caixa de velocidades do 2 Cavalos Fourgonette, apenas tinha 3 cores (vermelho Hopi, beje Kalahari e verde Montana), os piscas traseiros estavam no para-lamas traseiro entre 2 asinhas, assentos dianteiros independentes deslizantes, o banco traseiro passou a ser rebatível criando uma área de carga plana, perdeu os tampões das rodas, recebeu faróis traseiros redondos, os piscas dianteiros retangulares passaram para os para-lamas dianteiros, o para-brisas rebatível era opcional fixável com elásticos, portas amovíveis  (de série tinha apenas uma corrente) e capota de lona com paneis de vinil foram adicionados.




As vendas arrancaram ainda em 1968 e no ano seguinte o Mehari parte na sua primeira grande aventura que atraiu muita publicidade: em Julho de 1969 o Royal Automobile Club Junior de Liege organiza o raid Liege/Dakar/Liege em que participam 200 jovens belgas e 25 Citroen Mehari acompanhados por 4 camiões de assistência - 100 jovens levaram os 25 Mehari até Dakar e os restantes 100 fizeram a viagem de volta para Liege.





1970->1979 Série 2
Em 1970 a Citroen fez algumas alterações para facilitar a produção - os piscas dianteiros passaram a ser redondos e colocados ao lado dos faróis dianteiros, faróis traseiros do HY, surge uma versão de apenas 2 lugares para aproveitar vantagens fiscais, passa a estar disponível em laranja Kirghiz e em opção pode receber uma embraiagem centrifuga, esguichos limpa-vidros e sistema anti-roubo.

Ao longo dos anos foi recebendo alguns refinamentos adicionais, como o capot mais espesso e nervurado para maior resistência, novo sistema de fixação do capot e capota, para-brisas em alumínio rebatível em série sem ângulos vivos, uma pega para o passageiro dianteiro, painel de instrumentos completo com mais luzes de avisos e outras.

Também houveram mudanças debaixo do capot - a partir de 1973 recebe um novo carburador Solex, novo filtro de ar (que obriga ao capot com bossa central) e um maior depósito de combustível (25 litros). Em 1976 chega o verde Tibesti e os amortecedores dianteiros passam a ser hidráulicos.
Esta geração teve também uma das opções mais interessantes mas que creio não ter chegado a Portugal - as coberturas ENAC produzidas pela mesma empresa que fabricava os 2 Cavalos comerciais para a Citroen. 

São capotas tipo hard-top feitas do mesmo plástico ABS e côr da carroçaria substituindo a capota de lona isolando o interior - exceto as portas que continuam a ser plásticas.


Particularidades da série 2
- Mehari USA - 1970
Em 1970 a Citroen tenta introduzir o Mehari nos Estados Unidos homologando-o como um utilitário/comercial. Esta versão é facilmente identificável pelos faróis dianteiros redondos específicos e os piscas extras colocados lateralmente. Infelizmente apenas 1.000 unidades chegaram ao Havai como viaturas de aluguer da Budget.

- Piromaníaco dos Mehari - 1974
O Mehari tem também uma interessante de historia: é provavelmente o único automóvel especificamente alvo de um pirómano. Em 1974 um parisiense andou a incendiar Mehari's durante a noite - 63 automóveis foram incendiados por um incendiário que nunca foi identificado.
Todas as manhãs Paris acordava para mais um Mehari carbonizado e apesar dos esforços da policia nunca o conseguiam apanhar - até ter parado subitamente. O ultimo foi incendiado numa garagem de um prédio da Rue Caulaincourt, incêndio que rapidamente se propagou ao resto do edifício. Cinco moradores tiveram que receber assistência médica em hospital, com um a falecer após admissão ao hospital - curioso que os incêndios pararam depois deste falecimento, não?



1978->1987 Série 3
No final do verão de 1977 a Citroen refresca novamente o Mehari com alguns detalhes exteriores mas principalmente mecânicos.


Exteriormente os piscas passam a retangulares e para baixo dos faróis dianteiros, o para-choques dianteiro é plano, grelha dianteira desmontável, novo capot para albergar novo filtro de ar e tem um nova cor: o bege Hoggar. No interior recebe enfim cintos de segurança ventrais para os passageiros dianteiros e um volante mais pequeno do 2 cavalos. Mecanicamente recebe uma nova desmultiplicação da direção, o sistema de travagem do Ami 8 e o filtro de ar e carburador do LN passando a potência de 28 para 33 cavalos.

Particularidades do Série 3
- Mehari 4x4: 1979->1983
O Citroen Mehari teve varias variantes por todo o mundo, mas uma foi particularmente interessante: o Citroen La Dalat produzido no Vietnam. Nos anos 70 um concessionário da Citroen desenvolveu uma transmissão integral para o Citroen La Dalat e funcionou tão bem que a Citroen mandou vir um para França para ser desmontado e analisado. O resultado final foi o Citroen Mehari 4x4 apresentado ao publico em Maio de 1979.


Exteriormente identificável pelo grelha protetora dos faróis dianteiros, os faróis traseiros eram do Acadiane e o pneu suplente passa para debaixo do capot. Mas o mais importante era sem duvida a transmissão integral com uma caixa de 4 velocidades com redutoras para aproveitar todo o binário do 2 cilindros de 602 cm3 e 29 cavalos - conseguia trepar inclinações até 40%. Infelizmente não teve grande sucesso vendendo apenas 1.213 unidades entre 1979 e 1983 - hoje em dia valem uma pequena fortuna.



- Citroen A 4x4: 1979
A principal razão para o Mehari 4x4 existir era o lucrativo mercado militar - a versão "civil" tinha uma pequena distância ao solo e não era propriamente rígido para lidar com o terreno acidentado, algo "diferente" era necessário para arrebatar a encomenda de 5.000 viaturas todo-terreno ligeiras para o exercito.
A carroçaria passou a ser metálica, o 2 cilindros de 652 cm3 recebe injeção eletrónica acoplado com uma caixa de velocidades de 7 velocidades para a frente e para trás, redutoras e diferencial que pode ser bloqueado, pneus Michelin específicos e suspensão derivada do Ami Super permitia mais conforto e mesmo assim trepar inclinações de 50% completamente carregado.

Foram produzidas 10 unidades para os militares testarem, mas estes preferiram investir numa viatura mais pesada e acabaram por encomendar os Peugeot-Mercedes P4.

- Series especiais 1983
Para tentar relançar as vendas nos anos 80 a Citroen apresentou em 1983 duas series especiais reservadas aos seus maiores mercados: os Mehari Azur e Plage, ambos produzidos na fabrica de Mangualde mantendo alguns elementos comuns como as jantes, sistema de fixação de capota e os assentos às riscas.
 - Mehari Azur
Este modelo foi desenvolvido a pensar para o melhor clima do Mehari: o verão e o mar, daí o Mehari Azur estar apenas disponível numa combinação bicolor branca e azul. A carroçaria e jantes eram em branco enquanto as portas, capota exclusiva, grelha, rebordos dos faróis e listas do capot são em azul. O tecido do assentos era também em listas brancas e azuis, e um logo especifico "Azure" na base do para-brisas que ligam as 2 faixas azuis do capot.

Inicialmente foi produzido como uma serie limitada com 500 exemplares a irem para França e os restantes 200 a serem enviados para Itália, Espanha e Portugal - mas o sucesso foi tal que a Citroen decidiu mantê-lo até ao fim como mais um modelo da gama.

 - Mehari Plage
Enquanto o Azure passou de série limitada para um modelo permanente da gama, o Mehari Plage foi de produção limitada: apenas 500 unidades foram produzidas para Portugal e Espanha, e a minha mãe teve um! Este modelo estava apenas disponível em amarelo Atacama na carroçaria, capota e assentos, bem como autocolantes "Plage" um pouco por todo o lado.







1987 - Fim da produção
Tudo o que é bom tem que chegar ao fim - 1987 foi o ultimo ano de produção para o Citroen Mehari. Com uma gama reduzida a apenas 3 modelos (modelo base de 2 lugares e o Azur com 2 e 4 lugares) apenas foram produzidas 381 exemplares nesse ano. 

Depois de 19 anos e 144.953 unidades produzidas (143.740 de tração dianteira e 1.213 4x4) o ultimo exemplar deixa as linhas da fabrica de Mangualde em Julho de 1987. 
Série 1: 13.461 unidades;
Série 2: 87.774 unidades 4x2 e 1.213 unidades 4x4;
Série 3: 42.505 unidades;

Nada mal para um automóvel de plástico...

Apresentação Citroën Méhari (Archive INA) - 1968


Publicidade Citroën Mehari Portugal - 1975


Citroën, criador de conforto - Em Todos os Lugares e de Volta, 1972-1985


Citroën Méhari no cinema



Ensaio Citroën Méhari 4x4 (Archive INA) - 1979


Citroën Méhari 4x4


Citroën Méhari 4x4 no Paris-Dakar 1980


Citroën Méhari 4x4 na "La piste des toubibs" - 1980
Documentário do Mehari 4x4 no Paris-Dakar de 1980 em que o pequeno Citroen foi utilizado como viatura de assistência médica da prova.


Citroën Méhari 4x4 off-road

Créditos:

1 comentários:

  • Unknown says:
    7 de outubro de 2021 às 16:41

    Acompanhei todo este trageto e estou grato pela informação, pois enquanto admirador do modelo em referência, que mais gostaria de possuir, não conhecia a sua história e gostei.