Recordar Ferdinand Piëch, o ultimo alfa

Com a morte aos 82 anos de Ferdinand Piëch a industria automóvel perdeu uma das suas figuras mais importantes e icónicas cada vez mais substituídos por obscuros e inodoros comités de contabilistas - um dos últimos homens fortes, no topo da lista com nomes como Gottlieb Daimler, Henry Ford, Enzo Ferrari e Kiichiro Toyoda. Sei que faleceu há cerca de uma semana mas não posso deixar de escrever sobre o seu impacto na industria automóvel e demorei a conseguir ficar satisfeito com o que escrevi - não é fácil escrever sobre quem reinventou o automóvel e até ser (sem querer) o causou o dieselgate.


Quem era Ferdinand Karl Piëch?
Ferdinand Piëch era um dos netos de Ferdinand Porsche (o fundador da Porsche) e prova de que há mais que passa nos genes que a cor dos olhos e cabelo: Piech não se ficou a gozar da fortuna da família, sempre um homem pratico com uma grande paixão pelos automóveis estava decidido a mostrar que conseguia seguir nas pisadas do seu avô. Aos 26 anos consegue o diploma de engenharia e em 1963 ingressa no departamento de competição da Porsche.

Colaborou no desenvolvimento de vários modelos da marca mas saltou para a ribalta quando liderou o desenvolvimento do Porsche 917 - quando estava à frente do desenvolvimento da Porsche em 1968 (com 31 anos) investiu dois terços do orçamento anual da Porsche para construir 25 protótipos de competição com um novo motor de 12 cilindros boxer arrefecido a ar. Os membros da família revoltaram-se acusando Piech de abuso de poder e de arriscar a empresa num único novo modelo movido por um motor que ainda não tinha sido testado. Foi assim que nasceu o Porsche 917, que veio a tornar-se num dos automóveis de competição mais bem sucedido da história e marcou Piech como um visionário.

Em 1972 é recrutado para a Audi como diretor técnico onde foi responsável pelo desenvolvimento dos Audi 80 e 100. Chega a presidente da marca 3 anos mais tarde decidido a transforma a Audi numa alternativa as marcas premium BMW e Mercedes. Foi uma tarefa herculeana porque a Audi não tinha nem de perto nem de longe a imagem e notoriedade dos rivais premium, mas também porque ninguém na altura achava que isso fosse possivel. Numa demonstração do engenheiro visionário, uma das suas grandes apostas que ajudou na transformação da Audi foi o desenvolvimento do sistema de tração integral Quattro e a sua participação no mundial de rallies.

Nunca capaz de ficar quieto Ferdinand Piëch chega à direção da Volkswagen em 1983 numa altura de dificuldade - até a palavra "falência" andava pelo ar. Mas sempre o engenheiro visionário Piech apostou em introduzir tecnologias sofisticadas até nos automóveis mais pequenos e colocou o grupo VW no caminho da construção modular, que permitiu que as diferentes marcas do grupo consigam partilhar até 65% de componentes permitindo grandes volumes com grandes economias de escala que cobririam este investimento. Algo visionário na altura e uma aposta que poderia definitivamente enterrar a Volkswagen, mas tal como antes funcionou e construção modular é atualmente a norma em toda a industria automóvel e ninguém domina este sistema como o grupo VW.

Piech colocou engenharia e qualidade de construção acima dos lucros, e assim que conseguiu recuperar a VW da beira da falência partiu na demanda de transformar o grupo Volkswagen na garagem de sonho de qualquer humano com um batimento cardíaco - adquirindo marcas de luxo como a Bentley, Bugatti e Lamborghini perdendo a Rolls Royce para a BMW no ultimo segundo. Pelo meio também adquiriu a Skoda, reinventou o Carocha baseado no Golf com o "New Beetle" que se manteve em produção até Julho de 2019.

Piech deixou a direção da Volkswagen em 2002 com um magnifico registo: nesse período de 9 anos transformou mil milhões de euros de prejuízo em 2,6 mil milhões de lucro, abriu caminho nos EUA e acrescentou marcas como a Seat, Skoda, Bentley, Audi, Porsche, Ducati, MAN e Scania ao portefólio do grupo. Mas para Piech o caminho é sempre para a frente e passou de CEO da Volkswagen para chairman da supervisão de todo o grupo Volkswagen.

À frente do grupo Volkswagen o momento mais conhecido talvez seja quando a Porsche tentou comprar a Volkswagen - em 2009 a Porsche tentou tomar de assalto a VW adquirindo 75% da marca, mas falhou quando a crise financeira instalou-se e não conseguiu arranjar o dinheiro para pagar as opções que tinha assumido. Endividou-se fortemente e para se salvar da possível falência a Volkswagen aceitou comprar a Porsche. Segundo reza a história, Piech trabalhou nos bastidores assegurando-se que ninguém emprestava à Porsche o dinheiro necessário não deixando outra chance se não a rendição completa e absoluta. Piech adiciona uma nova marca ao grupo Volkswagen e vários responsáveis da Porsche à sua lista de vitimas.

Piech manteve-se como chairman da supervisão do grupo Volkswagen até ao fim de 2015 enquanto enfim lhe fizeram frente - mas para vos falar disso, temos que abraçar o lado negro da força de Piech.


Bem-vindo ao lado negro
Piech inspirava iguais medidas de medo e admiração - um génio visionário comprovado mas ai de quem não atingisse os objetivos que ele estabeleceu ou de alguma forma o contrariasse. Não era preciso muito para despoletar Piech - segundo conta o mito, se uma critica acertasse no sitio certo Piech falava mais calmamente que o habitual e com respostas curtas. Esse era o "beijo da morte" de Piech que governava sem tolerância a falhas ou criticas: conseguias o que ele exigia ou procuravas novo emprego.

Era um mestre de criar e manipular rivalidades internas a seu favor e exigia lealdade incondicional dos seus colaboradores e engenheiros. Uma das muitas historias vem dos seus tempos à frente do desenvolvimento da Audi em que temia que alguns dos seus engenheiros fossem recrutados para a Mercedes e BMW com quem queria competir - no desenvolvimento do Audi 100 um dos pontos que iam investir como ponto de venda premium eram as suas qualidades aerodinâmicas, Piech utilizou tuneis de vento fora da Audi para que os engenheiros não tivessem acesso a essa informação.

Mas não era apenas os rivais, ele também não tinha problemas em queimar alguns dos seus ajudantes. Um dos maiores escândalos da VW, antes do dieselgate, decorreu quando Piech ainda era CEO da VW e foi descoberto um saco azul usado para corromper a direção do sindicato de trabalhadores com viagens de luxo ao estrangeiro e até visitas a bordeis. Apesar de inicialmente "apontado" Piech escapou deste escândalo sacrificando alguns dos seus mais diretos ajudantes.

Inicialmente referi que Piech será muito possivelmente o causador, sem o saber, do dieselgate. Segundo o que se sabe até agora o dieselgate começou a formar-se em 2006 quando engenheiros da Audi/Volkswagen que trabalhavam no projeto “US 07" (o primeiro motor diesel EA189 diesel 2.0 litros para o mercado dos EUA) rapidamente percebeu que não havia forma de conseguir cumprir os limites de óxidos de azoto do mercado norte-americano. E com a cultura de medo instalada por Piech eles preferiram mentir a admitir que eram incapazes de fazer o que lhes foi exigido.

Piech poderá não ter não ordenado o dieselgate, mas juntou o combustível e oxidante necessário para que uma pequena faisca bastasse para iniciar o incêndio que já queimou mais de 30 mil milhões de euros do grupo Volkswagen em processos legais e multas.

Piech também teve alguns erros de visão: o poço sem fundo que foi a demonstração de poderio tecnológico do Bugatti Veyron, o falhanço da limusina do povo Phaeton e a demanda pelo automóvel que consumisse apenas 1 litro de combustível por 100 quilómetros foram todos projetos extremamente dispendiosos sem grande retorno. E a Seat que ainda não deu lucro.


Saída pela porta dos fundos
Piech deixou o grupo em 2015 quando enfim lhe fizeram frente. Piech e Winterkorn (CEO da Volkswagen na altura) trabalhavam juntos há muito tempo e Winterkorn sempre foi visto como o mais provável sucessor de Piech como chairman da Volkswagen em 2017. Mas Piech não estava satisfeito com os maus resultados nos EUA, a mega-fabrica de Chattanooga que continuava sub-aproveitada devido à fraca procura do Passat americano que Winterkorn fortemente defendeu - Piech queria Winterkorn na rua. Se tivesse feito essa critica internamente talvez a tempestade tivesse sido menor, mas Piech fez essas (e outras menos abonatórias) afirmações a um jornal alemão - até a família Porsche disse que primo Piech estava da falar a titulo pessoal e em nada representava a opinião da família Porsche.

Pela primeira vez Piech mordeu mais que conseguia engolir de forma muito pública acreditando na força do seu historial mas o tiro saiu ao lado: o estado da Baixa Saxónia (que detém 1/5 dos direitos de voto o grupo VW), a comissão de trabalhadores e o comité de direção ficaram ao lado de Winterkorn e Piech ficou absolutamente sozinho contra o CEO da Volkswagen.

A sorte tinha acabado e Piech saiu de cena...mas sem a sua ironia: Piech deixa o grupo Volkswagen em Abril de 2015 e o escândalo de emissões explode a nível mundial alguns meses mais tarde levando à demissão de Winterkorn sendo substituído por Mathias Muller - o que curiosamente era exactamente o que Piech queria!


Concluindo
Não tenho duvida que quando o pó assentar Piech será reconhecido como um dos gigantes da industria automóvel - pode não ter inventado o automóvel, mas reinventou-o. O leitor pode não conduzir um VW ou uma viatura do grupo VW, mas está sem qualquer duvida a conduzir algo influenciado pelo génio e visão de Ferdinand Piëch, o ultimo alfa da industria automóvel.

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